terça-feira, 14 de outubro de 2025

21 semanas #6 - Shamata pura na vacuidade



Após já termos praticado Shamata pura e também ter meditado sobre o Prajnaparamita, nesta semana vamos fazer as duas coisas juntas: estar presentes na vacuidade.

#14/10, terça feira: entrando rapidamente em estado de presença, também rapidamente percebemos a vacuidade de todas as identidades e fenômenos. Após contemplar por alguns minutos, surge a dúvida: é a mente que cria o vazio ou é do vazio que surge a mente?


segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Decifrando a mente #10 - os mapas mentais


A parte mais importante do estudo do funcionamento da mente são justamente os nossos mapas mentais. São eles que definem nosso humor, nossa motivação e como todo o resto da mente deve operar. São os óculos utilizados por todos os atores para que cada um decida o que deve fazer com a informação que possui. Como são vários os atores, é claro que essas instruções podem ser contraditórias.

Os mapas mentais funcionam a partir de uma identidade. Temos infinitas identidades que procuram rotular "eu sou isso" ou "eu sou aquilo". As identidades são como infinitos reis que mandam em um castelo, mas o castelo só tem um trono e os reis se sucedem infinitamente para ocupar o lugar de comando. Assim que senta no trono, a identidade busca se solidificar, atraindo coisas que a sustentem, divulgando a todos as suas incríveis qualidades, afastando todas as ameaças a seu poder e combatendo todos aqueles que a contrariem.

Como todos os reis, cada identidade possui seus mensageiros que vão comunicar a todos os ditames do imperador, bem como exaltar e divulgar sua inegável majestade. Também possui um conselho de sábios que vão trazer informações e um séquito de operários que construirão monumentos para mostrar para todos os povos do planeta a sua magnificência. É claro que também terá um exército muito hábil em defender o seu reino e caçar a todos que possam representar alguma ameaça.

Mas cada identidade permanece no trono de comando apenas por muito pouco tempo. Logo são substituídas por outra identidade, com seus próprios atributos, qualidades, medos e raivas, conselheiros, séquitos e exércitos.

Eu gosto de pensar nessa alegoria dos milhares de reis que moram em um castelo com apenas um trono. Acho mais fácil de entender do que o javali, o galo e a cobra usados por Buda para descrever a mesma coisa: as bolhas de realidade. São apenas alegorias diferentes, mas o significado é o mesmo.

As bolhas de realidade são recortes toscos e distorcidos da realidade que nos cerca. O tempo todo, vemos apenas um aspecto bastante limitado e obtuso da realidade, totalmente influenciado pelos referenciais e pela identidade do rei que está no trono, ou pelo javali.

Mas os mapas mentais não são constituídos apenas pelas bolhas de realidade. Eles também dependem do estado emocional vigente, ou melhor, da paisagem mental em que estamos operando no momento. Buda descreveu essa paisagem mental usando a alegoria dos seis reinos: Reino dos deuses, dos semi-deuses, dos humanos, dos animais, dos seres famintos e dos infernos. Particularmente, não consegui imaginar uma descrição melhor, então vou manter essa mesma. 

As características dos seis reinos é amplamente abordada em uma vasta literatura e acho desnecessário tentar explicar algo que tem tanta bibliografia a respeito. Basta dar uma pequena pesquisada em qualquer fonte minimamente confiável. 

Então concluímos que o mapa mental vigente é formado pela bolha de realidade e pelo reino em que se encontra a mente em cada instante, incluindo ainda fatores como a energia disponível e a motivação. Tudo isso junto vai definir o óculos com o qual cada ator vai olhar para aquilo que está sendo percebido ou pensado no momento. A cor do óculos vai indicar qual a carta que cada estagiário vai escolher para responder ao estímulo que a mente está recebendo, por exemplo.

Mas quem controla os mapas mentais? Qual o ator que comanda essa parte da mente que define o que deve ser feito por todo mundo? Quem é o comandante do setor mais importante da mente?

Em um primeiro momento, pensei que era a consciência, pois ela tem o poder de mudar o mapa quando desejar. Mas ela também é influenciada. Se ela não agir ativamente por vontade própria, vai seguir o roteiro do mapa atual passivamente. Então há outro ator que comanda o mapa mental, mas ainda não sei identificar quem é.

Buda representa esse ator como sendo Maharaji, uma manifestação de Mara. É ele que comanda a roda da vida, mudando os reinos onde estamos e trazendo as bolhas de realidade para o trono. Como não consigo imaginar outra resposta melhor no momento, vou manter essa mesma alegoria. Mara é o rei do Samsara, é ele que cria Dukkha e Maharaji é a parte dele que comanda a nossa mente, se não estivermos conscientes. 

Então, na falta de um entendimento melhor, concluímos que Maharaji é quem define os mapas mentais que influenciarão todas as decisões tomadas pela nossa mente. A seguir, veremos um aspecto que não é abordado nos cinco skandas: as respostas de corpo, fala e mente.


 

21 semanas #5 - Prajnaparamita

 


Um dos pilares centrais do budismo Mahayana é o Prajnaparamita. Entendemos que tudo o que existe é construção da nossa mente. As coisas não são como parecem, nem como imaginamos que elas sejam. As coisas não possuem uma realidade intrínseca sólida. Nada que existe possui uma identidade, tudo é vazio de uma identidade intrínseca. Tudo é vacuidade. Nossa mente mora na vacuidade e é desse vazio que projetamos tudo o que percebemos ao nosso redor, mas as coisas não são como percebemos. 

O mantra do prajnaparamita sugere que estamos em uma margem e precisamos atravessar para a outra margem. Por isso a alegoria de um barco. Nesta margem, vemos as coisas com a projeção da nossa mente: casas, árvores, automóveis, pessoas, montanhas. Tudo parece ser normal. Durante a travessia, vamos percebendo que tudo isso é criado em nossa mente a partir de um vazio luminoso. Ao chegarmos do outro lado, entendemos que tudo o que existe é vacuidade. Atravessamos completamente e repousamos na vacuidade. É isso que quer dizer o mantra: GATE GATE PARAGATE PARASAMGATE BODHI SWAHA.

Uma árvore não é uma árvore. É um conjunto de incontáveis coisas que formam aquilo que nossa mente rotula como árvore. E mesmo cada um de seus componentes, em si, não são esses componentes. Eles também são vacuidade, eles também não possuem uma identidade. Nada que vemos ao nosso redor é como pensamos que é.

Um edredom dobrado em cima da cama não é um edredom. É um amontoado de fiapos trançados e costurados com um recheio de fibras. Se olharmos no microscópio, não existe edredom em lugar algum. Nem as fibras, nem os fiapos. Só há vazio, algumas moléculas que se conectam com outras de uma forma ligeiramente organizada, sendo que seu conjunto completo cria uma forma que nossa mente, de acordo com seus referenciais, interpreta como "edredom". Então, aquele edredom não é um edredom. Não existe edredom, mas a nossa mente cria a ideia de um edredom a partir do vazio luminoso onde opera e a projeta sobre aquilo que nossos olhos estão vendo. O edredom só existe na nossa mente. Para uma traça, aquilo não é um edredom, é comida, porque os referenciais da traça são outros. Para um pássaro, é uma fonte de material para se fazer um ninho. Para um cão, é um brinquedo pronto para ser destruído. No momento em que nossa mente enxerga o edredom, ela deixa de ser capaz de ver o vazio luminoso que há por trás dele. O prajnaparamita é a sabedoria que nos permite perceber a vacuidade em tudo o que existe. Forma é vazio, vazio é forma, nada mais.  

#06/10/25, segunda feira: refúgio, linhagem, motivação, shamata, methabavana. Cinco minutos observando o edredom à minha frente e mais cinco minutos contemplando. A compreensão do prajnaparamita ainda está em um nível bastante racional, apesar de presente durante todos os dias, quase o tempo todo.

#07/10/25, terça feira: voltei o prajnaparamita para mim mesmo. Eu sou apenas uma construção da minha mente. Um amontoado de células que acredita ser alguém ou alguma coisa. Um corpo vivo que pensa ter uma identidade.

 


quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Decifrando a mente #9 - energia

 


A mente funciona como um poderosíssimo e extremamente complexo computador. Como tal, é óbvio que ela precisa ser alimentada por uma fonte de energia.
Mas a energia que faz a mente funcionar possui alguns diferenciais. Não é apenas energia elétrica pura. Ela tem impulsos que nos movem e que definem o caminho que devemos seguir. Esses impulsos (cármicos) são tão fortes que é muito difícil conseguirmos resistir a eles.
O exemplo mais simples é o impulso sexual. Podemos estar fazendo qualquer coisa e, por qualquer ou nenhum motivo, do nada sentimos um fogo que simplesmente incendeia tudo pela frente. O corpo imediatamente se aquece, a visão e a audição se turvam e ficam focadas apenas naquilo que despertou nosso desejo. O corpo manifesta ereção e lubrificação, nossa respiração fica mais ofegante, nossas mãos suam. E todas as nossas ações passam a tentar levar a cabo a satisfação imediata do desejo sexual. Surge uma energia fenomenal que nos permite grandes esforços físicos e, após a satisfação, no homem, a energia simplesmente cessa, permanecendo ainda latente na mulher por mais alguns minutos. Devido ao desgaste energético, precisamos parar, descansar, acalmar a respiração e os batimentos cardíacos, e nos vestir ou cobrir novamente, pois a temperatura do corpo volta para o normal. Sentimos frio com bastante rapidez. Logo depois nos sentimos fracos, satisfeitos mas com baixo nível de energia. Precisamos nos alimentar, beber água, respirar e fazer atividades com menor gasto energético para recuperarmos o nível normal das nossas baterias internas, o que pode levar até algumas horas.
Outro exemplo é a raiva: lembram do javali, do galo e da cobra? Se alguém fere o nosso javali (nos ofende, insulta ou provoca), a cobra salta em sua defesa. A energia simplesmente aparece. O sangue sobe à cabeça, ficamos enrubescidos, crispados, prontos para atacar. A raiva também ofusca a nossa visão e turva nossos pensamentos.  Passamos a discutir selvagemente, por vezes de forma completamente irracional. Acabamos tomando ações de corpo, fala e mente que agridem, ferem ou até matam. Depois da briga, voltamos ao normal e percebemos que perdemos completamente a razão. Dissemos ou fizemos coisas que não deveríamos e então colheremos as consequências disso. Poderemos estar feridos, arrependidos, humilhados. Poderemos perder amigos, oportunidades, arranjar problemas sérios, inimigos e sofrer vinganças. Sim, nossas ações sempre geram consequências.
Diferente da raiva, também temos a ira: uma mãe que está passeando na rua com sua filha, de repente percebe que a menina se solta e tenta atravessar a rua, sendo que um carro está vindo e vai atropelá-la. A mãe simplesmente salta e puxa a sua filha de volta, em uma ação irada que ela mesma jamais pensaria ter capacidade física para realizar. A energia simplesmente apareceu. Ela seria capaz de pular um muro de dois metros de altura. Levantaria um tronco de mais de cem quilos. Ela quebraria um pescoço com as próprias mãos para salvar sua filha e, nesse caso, não seria por raiva, mas pela ira. A ira salva, enquanto a raiva mata. São energias diferentes, igualmente intensas, mas diferentes.
O medo também é outro tipo de energia. Ele pode simplesmente nos paralisar. Não conseguimos falar nem nos mover. Ficamos atônitos e imóveis até o perigo passar. Mas também pode nos dar uma energia descomunal para a fuga. Corremos mais rápido e muito mais longe do que pensaríamos ser capazes. Saltamos obstáculos e distâncias que normalmente não conseguiríamos. O medo também nos prepara para o enfrentamento, de forma idêntica à ira: somos capazes de qualquer coisa para salvar nossa própria vida.
O nível de energia que temos é resultado de uma série de fatores: a motivação, a alimentação, o sono, as condições físicas etc. Um exemplo é quando jogamos uma bola na direção de um cão: ele pode apenas abanar o rabo, sem sair de seu lugar, mas ao pegar a coleira para passear, ele salta como se tivesse sido ligado em uma tomada. A motivação para passear na rua é muito maior do que a de brincar com uma bola. Da mesma forma, podemos estar na cama, prontos para dormir, mas se alguém convida para uma festa, surge do nada uma energia que nos faz trocar de roupa e, animadamente, correr para o evento. (anima em latim quer dizer justamente "energia vital").
No budismo tibetano, essa energia é chamada de Lung. Ela não vem da comida que ingerimos, ela apenas surge. São os ventos autossurgidos que se tornam veículos da nossa consciência, superando as capacidades do nosso corpo e da nossa mente. O Lung é profundamente estudado no Tantra, onde aprendemos a entender, controlar e direcionar essa energia interna, através das quatro qualidades e das seis perfeições: amor, compaixão, empatia, equanimidade, generosidade, moralidade, paz, energia constante e sabedoria. O lung, em toda a sua plenitude, é despertado quando alcançamos o estado de paz interior. Nesse momento, a energia passa a estar disponível o tempo todo para a consciência. Os meios hábeis surgem. Nos tornamos capazes de fazer e motivar as pessoas a fazer coisas simplesmente impensáveis, de modo que jamais seríamos capazes de fazer de outra forma. É o lung que faz, por exemplo, com que uma estátua de Buda com 35 metros de altura seja erguida em uma região remota do Espírito Santo, ao custo de quatro milhões de reais, algo completamente impensável para uma modesta entidade sem fins lucrativos. É o lung que faz com que o CEBB (outra entidade sem fins lucrativos) tenha dez aldeias rurais no Brasil e dezenas de salas de estudo em todas as regiões brasileiras.
É o lung que mantém as coisas vivas. O lung mantém o nosso corpo. Quando o lung se apaga, o corpo morre. Mas ele não se restringe a um corpo vivo. É assim também com tudo o que fazemos: empresas, cidades, impérios, tudo isso se mantém enquanto houver lung. No momento em que o lung termina, as empresas fecham, cidades desaparecem, impérios implodem. Uma estrela se mantém viva por bilhões de anos enquanto tiver lung para isso. Quando o lung cessa, a estrela esfria, se expande e colapsa em uma anã branca ou em um buraco negro. 
O lung está além daquilo que é manifesto. Na verdade, é o lung que faz com que as coisas se manifestem. Ele vem antes. Ele está lá, vivo, acessível, o tempo todo. A energia que temos em nossa mente é apenas uma fagulha dele. As coisas só conseguem se manifestar se tiverem lung para isso, e se mantém manifestas apenas enquanto durar o lung.
Em nossa mente, a energia é controlada (mas também influencia) as nossas emoções. É o gerente das emoções que possui a chave da energia. O gerente lógico não tem. Nosso gerente lógico aprende o caminho para o despertar, mas é o gerente das emoções que realiza o trabalho com a energia, até alcançar o estado de paz interior, quando então há o despertar da consciência. Dali em diante, é a consciência que controla a energia.




Decifrando a mente #8 - o fracassado

 


Outro ator importante dentro do estudo da mente é o Fracassado. Ele é composto por vários outros aspectos: o sabotador, o incauto, o procastinador, o porra-louca, enfim, todos os agentes que nos levam, de uma forma ou outra, a fracassar miseravelmente em qualquer empreitada.
O Fracassado tem uma origem cultural: nós somos ensinados a sermos fracassados. Aprendemos a nos auto-sabotar, a procrastinar, a começar coisas e deixar pela metade, a não finalizar corretamente, a ficar começando coisas o tempo todo sem dar sequência, a não ter persistência.
Mesmo dando continuidade aos projetos, às vezes decidimos por caminhos que acabam trazendo mais problemas do que soluções. Entramos em projetos duvidosos sem as devidas precauções. Acreditamos nas pessoas menos confiáveis. Compramos histórias mirabolantes e decidimos que podemos subir uma montanha calçando sandália de dedo.
Existe um gatilho que dispara o fracassado: a autocomiseração. Ser o coitadinho. E isso vem de berço: quando ainda estávamos engatinhando, tentávamos empilhar alguns brinquedos e, quando a pilha caía, nós chorávamos. Ao nos ver chorando, mamãe nos pegava no colo e nos acalentava. Aprendemos que o nosso fracasso gera uma reação acolhedora. Aprendemos que o fracasso nos proporciona prazer. Fracasso gera dopamina. Se eu não consigo cortar a carne, mamãe corta pra mim, então nunca vou me esforçar para aprender a cortar a carne direito, pois quero ter sempre a atenção da mamãe. Se eu não fracassar e chorar, posso conseguir fazer, mas não vou ganhar colo, e o colo é mais importante que a vitória.
Isso aconteceu lá na primeira e mais tenra infância, mas ficou gravado para o resto da vida. Fomos crescendo e, em algumas circunstâncias, isso foi continuando. Como adultos, talvez o extremo desse ator possa ser visto nas sinaleiras, mendigando: quanto pior, quanto mais mal vestido, mais sujo, mais deplorável, melhor. Mais as pessoas sentirão pena e, assim, mais dinheiro darão em forma de esmolas. A pior forma possível de fracasso é recompensada pela solidariedade, pelo sentimento de pena dos outros, ou até pela sensação de "aqui está seu dinheiro, agora suma da minha frente". As pessoas pagam para não ver a miséria. 
O Fracassado nesse caso é, geralmente, um adulto mimado em excesso. Não posso comer um chocolate, então eu choro, assim mamãe me dá o chocolate. Quando adulto, seguimos chorando e lamentando, pois aprendemos que é o caminho pelo qual conseguimos mais facilmente alguma recompensa por algo que não merecemos. Mas isso tem um custo: seremos sempre medíocres, pois nos contentamos com o prêmio de consolação. Falharemos de propósito, inconscientemente.
Claro que essa não é a única causa da pobreza, da miséria, da situação de vulnerabilidade. Estou abordando somente o fracassado profissional, aquele que aprendeu a ser fracassado de berço.
O Fracassado faz uso de várias artimanhas para jamais conseguir vencer em alguma coisa. Começa a ler um livro e não termina. Começa uma reforma que nunca tem fim. Aquela arrumação do quarto ainda tem caixas empilhadas há dois anos. As panelas ficam no fogão para serem lavadas no dia seguinte. Não dá pra passear de bicicleta pois é preciso consertar o freio, mas vou fazer isso amanhã. Estou escrevendo um artigo, mas ainda não finalizei porque acho que ainda não está bom o suficiente. Não alcancei as metas de vendas porque deixei para ligar para os clientes na última semana e não deu tempo de ligar para todos. Aquela parede ficou pintada pela metade porque eu ia terminar no dia seguinte. Comecei um negócio com um amigo (que conheci recentemente), mas ele me passou a perna e levou todo o meu dinheiro. Não posso processar meu inquilino porque não assinei contrato de aluguel. Resolvi me candidatar a vereador mas perdi, porque troquei de partido duas vezes no ano. Abri uma farmácia, mas resolvi transformar em padaria, depois em oficina de motos e agora é uma corretora de seguros, mas nada dá certo porque não persisto no mesmo ramo.
Enfim, o fracassado é um ator mental de origem cultural. Ele aprendeu a sabotar todo e qualquer empreendimento, por mais simples que seja, pois espera ter a pena das outras pessoas como recompensa. Ele interfere no nosso processo mental inserindo frases como "não vai dar certo", "nem tente", "depois faço isso" em todas as resoluções que passem pela crítica da mente. Nesse ponto, precisamos distinguir entre o fracassado e o cauteloso: ter cautela é fundamental em todos os aspectos. O cauteloso caminha, um passo de cada vez, e às vezes volta um ou dois passos para trás para continuar prosseguindo por um caminho mais seguro, mas o cauteloso não para, ele segue até conseguir alcançar seu objetivo. O problema é desistir de tudo o tempo todo, esperando que os outros sintam pena.
 






Decifrando a mente #7 - a tela mental

 



Uma função muito interessante que temos é a nossa "tela mental". Ela é um sistema de retroalimentação, quase um setor de audiovisual disponível na mente e usada por todos os atores que estamos descrevendo.

A tela mental é bastante complexa. Ela pode até criar cenários incríveis, em 3D e coloridos, como em nossos sonhos lúcidos, que podem ser tão reais que não conseguimos distinguir se estamos sonhando ou se estamos acordados. Ela é usada pelo macaco louco, pelos gerentes e até pelos estagiários do piloto automático. Também é usada pela nossa consciência e está sendo usada agora, nesse momento, enquanto você lê esse texto, pois se eu sugerir: "imagine um gramado bem verde com árvores e o mar ao fundo", você provavelmente deve ter criado e projetado essa cena em sua tela mental.

Nossa mente se retroalimenta daquilo que é projetado na tela mental através das percepções, como já vimos antes. Nós interagimos com essa projeção. Somos capazes de andar dentro dos nossos sonhos e de conversar com pessoas que só existem em nossa mente. As alucinações são distúrbios perceptivos nos quais não conseguimos distinguir se o que estamos vendo é real ou não.

As viagens astrais, sonhos lúcidos ou projeções da consciência, ocorrem integralmente dentro de nossa mente, sendo tão reais e perfeitas que acreditamos firmemente terem sido reais. Nesse ponto precisamos abrir parênteses: Nossa mente é capaz de perceber questões muito sutis, muito além da nossa percepção normal. Somos capazes de acessar informações, memórias e fatos que estão em um nível mais sutil e mais amplo, mas nossa mente tem dificuldade em entender o que está vendo e interpretar de forma correta. Dessa forma, ela cria uma projeção que procura traduzir a informação acessada dentro de alguma alegoria que conseguimos entender, que faça sentido dentro dos nossos referenciais. Então, sonhamos que estamos em uma montanha flutuando, conversando com um sábio em forma de unicórnio que nos diz uma determinada frase que parece conter toda a sabedoria do universo e, conforme vamos acordando, percebemos que nada disso faz realmente muito sentido. A questão é que talvez tenhamos mesmo acessado uma informação sutil muito importante, mas nossa mente criou todo um cenário com elementos que tentam, de alguma forma, materializar aquilo que foi percebido. Isso tudo é jogado como um filme em nossa tela mental e, depois, tentamos lembrar dos detalhes do que foi sonhado, sendo que a maior parte da informação original é perdida, pois parece simplesmente não ter nenhuma lógica.

Podemos também ter sonhos premonitórios: Nossa mente acessa uma área sutil de probabilidades e percebe que algo pode realmente acontecer. Então ela precisa de um agente que traga essa informação, alguém em quem confiamos e que consideramos ser protetores: um pai, uma mãe, um irmão mais velho, um mestre, um guru ou santo. A mente cria todo um cenário, com esse ator, interpretando um personagem nos avisando sobre o que está para acontecer. Esse sonho nos parece tão real que acreditamos realmente que essa pessoa veio até nós, que estamos mesmo falando com espíritos. Mas é tudo criação da mente, mesmo que em cima de algo sutil que realmente venha a acontecer. Aquilo que entendemos como "mediunidade" é justamente isso: acessamos de verdade uma área sutil e nossa mente cria atores e cenários que encenam essa informação. 

Ao estudarmos a mente com profundidade, vamos aprendendo a lidar com a tela mental, distinguindo melhor o que é ou não real, o que é ou não pura criação ou interpretação da mente. Vamos nos familiarizando com essa projeção e aprendendo com ela e, em um estágio bem superior, vamos entender que mesmo as projeções que são reais, na verdade, também são criações da nossa mente em cima daquilo que nossos sentidos captam. Por exemplo, quando vemos uma casa, nossa mente projeta essa mesma casa em nossa percepção, usando a tela mental. Mas não estamos realmente vendo AQUELA casa, e sim, uma projeção mental criada em cima daquela casa que nossos olhos estão enxergando. É uma casa, mas não é bem AQUELA casa. É outra coisa, é uma criação mental. Por fim, transcendemos a tela mental e entendemos que, enfim, aquela casa não é uma casa, mas é uma casa, e tudo bem. E nos divertimos com isso. O tempo todo, para tudo o que olharmos, acordados, alucinados ou dormindo.


Decifrando a mente #6 - o narrador

 


Outro ator importante da nossa mente é o narrador. Ele é quase uma extensão do macaco louco, mas tem umas funções um pouco diferentes.
Enquanto o macaco louco passa o tempo todo varrendo a memória atrás de coisas que podem ser interessantes, o narrador fica repetindo frases ou traduzindo aquilo em que pensamos.
Quando abrimos a janela e vemos um lindo sol nascente, o narrador descreve: "está um belo dia lá fora e o sol está nascendo". Ao prepararmos arroz para o almoço, o narrador lembra: "para cada porção de arroz, são duas porções de água". Quando estamos lendo algum texto, o narrador lê esse texto "em voz alta" para a gente. Aliás, um dos métodos de leitura dinâmica consiste justamente em calar o narrador enquanto lemos, afinal, nós captamos o significado do texto muito mais rápido do que nossa capacidade de "ler" o mesmo texto mentalmente.
O narrador pode também exercer funções como um tradutor para outros idiomas. Dessa forma, ao lermos as palavras "the book is on the table", ele traduz para "o livro está sobre a mesa". Como na leitura dinâmica, o aprendizado de outros idiomas também busca "calar" o narrador para que entendamos o significado do texto sem tentar traduzi-lo mentalmente.
O narrador fica lendo placas, outdoors, fica cantando músicas, enfim, ele traduz em palavras tudo o que estivermos pensando ou percebendo no momento. Isso pode ser útil quando estamos repetindo coisas para não nos esquecermos depois, mas na imensa maioria do tempo, ele apenas gasta energia mental e atrasa nosso pensamento, nossas percepções e nosso entendimento. Imagine um computador que precisa fazer um determinado cálculo e, para cada função, ele precisa parar e narrar o que está fazendo. É uma imensa energia desperdiçada sem qualquer necessidade prática.
O narrador tem suas funções no nosso dia a dia e pode até ser útil às vezes, mas, assim como o macaco louco, ele pode perfeitamente ser desligado e guardado na caixinha até o momento em que ele seja útil para alguma coisa. Se conseguirmos fazer isso, teremos liberado uma energia gigante para nosso cérebro, e não é tão difícil assim silenciá-lo. 
Quando estamos praticando shamata pura, ou zazen, o narrador fica em silêncio. Ele se cala quando estamos atentos no momento presente com a mente perceptiva. Assim, vamos aprendendo a silenciar o narrador e a acalmar o macaco louco, liberando energia para nossa consciência, como veremos nas nossas próximas postagens.

Decifrando a mente #5 - o macaco louco

 


Nossa mente é muito complexa e fantástica. Possui certos atores (ou funções) que beiram a insanidade. Um desses atores é o que chamo de "macaco louco".
Essa figura tem uma função bastante questionável: fica o tempo todo jogando coisas na mente, aleatoriamente, às vezes sem qualquer conotação com coisa alguma que esteja acontecendo no momento.
O macaco louco busca fragmentos de memória, frases desconexas, imagens bizarras, antigas lembranças de aromas, gostos ou sons, músicas, nomes, emoções, desejos, lugares, bem como tarefas e coisas a fazer, enfim, qualquer coisa que esteja armazenada em nosso cérebro, e joga em nossa tela mental. Sem sentido, sem causa prévia. Apenas sorteia alguma coisa e traz à tona. Um flash instantâneo que é transportado para nossa tela mental.
Acontece que nossa tela mental alimenta a nossa percepção. Então, aquele fragmento de memória ou frase aleatória é percebido pela nossa mente, podendo dar origem a uma corrente de ideias, capaz de ocupar nosso cérebro por horas. Também pode ser considerado inexpressivo ou sem importância e ser simplesmente descartado como lixo mental.
O macaco louco é responsável por manter nossa memória ativa, revivendo situações e sentimentos que estavam guardados há muito tempo. Pode ser útil para nos lembrar de pessoas e sensações das quais já havíamos nos esquecido.
Ele também fica tocando música na nossa rádio mental, recitando frases e versos que podem ou não fazer algum sentido, insistindo em palavras que não lembramos o significado e repetetindo nomes e títulos que podem existir realmente ou não.
Uma característica secundária da atividade insana desse ator é o fato de que, às vezes, lembramos de coisas importantes para fazer e, de repente, ele nos traz outro assunto à tona, nos fazendo esquecer completamente daquilo que era importante antes. Ele nos distrai. Aí ficamos tentando lembrar: o que é mesmo que eu ia dizer ou fazer? Por vezes, nem lembramos que havia algo importante a ser dito ou feito. Seguimos distraídos.
Durante as práticas de meditação, aprendemos a silenciar ou pausar o macaco louco, inicialmente por poucos segundos, depois por períodos maiores. Quando isso acontece, ocorre um imenso sentimento de paz e alívio, afinal, é como termos um papagaio em nosso ombro falando ininterruptamente o dia inteiro e que, de repente, esse papagaio se cala. É exatamente a mesma sensação: um silêncio, uma paz, um vazio revigorante que nos traz novamente ao momento presente.
Mas o macaco louco não fica calado por muito tempo. Ele continua com as funções dele. Mesmo com estágios mais avançados de domínio da mente, ele estará sempre lá, abrindo caixas e jogando tudo o que tiver dentro para fora, sem parar. Só que mais baixinho, talvez não tão rápido.
Em um estágio ainda mais avançado, se torna realmente divertido ficar assistindo as desastradas trapalhadas do macaco louco e todas as coisas incríveis que ele consegue desencravar dos recônditos mais esconsos do nosso cérebro. Mas, nesse momento, temos o controle total para mandá-lo de volta para a casinha, de onde ele apenas acena as mãos de vez em quando.
Nesse ponto, vale entender que distração é diferente de diversão. O macaco louco nos distrai. A atividade incontrolável do macaco louco é a origem do TDAH e de outros transtornos de atenção. Mas podemos manter o foco e apenas nos divertir com suas peripécias, sem esquecer daquilo que realmente é urgente ou importante a ser feito. A medicação nos ajuda a acalmar e calar o macaco louco, mas a meditação nos ajuda a olhá-lo de forma divertida, sem que nos atrapalhe.



segunda-feira, 29 de setembro de 2025

21 semanas #4 - Metabavana

 


Iniciando a quarta semana do roteiro de 21 itens do CEBB: Metabavana.

Refúgio, linhagem, motivação, atenção, presença.

29/09, segunda-feira: recitação da Metabavana direcionada a pessoas que amo, familiares, e também a pessoas que não gosto. Prática mais racional, ainda preciso aprofundar mais.

02/10, quinta feira: sentimento mais aprofundado. Sinto que eu realmente desejo que as pessoas alcancem a paz e a felicidade, sejam próximas ou não, de quem eu goste ou não. Percebi que devo deixá-las encontrar seus próprios caminhos para a felicidade, pois não cabe a mim exigir que seja esse ou aquele caminho.

05/10, domingo: caminhando na rua, expandi a metabavana para todos os seres. Percebi que todos estão fazendo o melhor que podem, dentro de suas limitações e de acordo com seus próprios referenciais. Cada coisa que existe é a mais bonita que pode ser. O piso de cimento do mercado é o melhor e mais bonito que o pedreiro conseguiu fazer. Os produtos nas gôndolas estão dispostos da melhor forma e do jeito mais bonito que o repositor conseguiu colocar. Na rua, o cachorro está abanando o rabo do jeito mais alegre que consegue. O pé de grama está crescendo da melhor forma que pode. A flor do campo está se esticando e abrindo suas pétalas do jeito mais bonito que consegue, para atrair os insetos polinizadores. Por todos os lados, para onde quer que possamos olhar, tudo o que existe é o melhor e mais bonito possível. Por isso, todos os seres estão sendo o mais felizes que podem ser. Todos os seres estão tentando se livrar do sofrimento da melhor forma que podem. Que a minha missão seja conseguir tocar cada um dos seres e ajudá-los a perceber as verdadeiras causas da sua felicidade e a superar as verdadeiras causas de seu sofrimento.


segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Decifrando a mente #4 - Os gerentes

 

Então, as formas ao nosso redor nos vêm através dos cinco sentidos e nossa percepção seleciona aquilo que acha que é importante, passando para os estagiários do piloto automático decidirem o que fazer.

Mas os estagiários não sabem resolver tudo e, muitas vezes, possuem cartas com informações erradas, inapropriadas, contraditórias ou insuficientes. Além disso, frequentemente eles não sabem o que fazer. Nesses casos, é necessária a intervenção de um gerente. O grande problema é que nossa mente possui DOIS gerentes, mandando da mesma forma nos mesmos estagiários: o gerente das emoções e o gerente lógico.

O gerente lógico é aquele cara chato. Ele tem um dicionário, uma calculadora, uma planilha, uma agenda, uma lista de tarefas e outras tantas ferramentas para ajudar nos cálculos e decisões racionais exigidos pelas demandas diárias. O gerente lógico é lento, metódico, preso a cronogramas e fluxogramas. Suas decisões são frias e racionais. Ele não sabe se divertir e não sabe o que fazer em situações que exigem mais emoção do que razão. E ele também comete erros em seus cálculos. É como um capricorniano com ascendente em virgem.

O gerente emocional é um pisciniano com ascendente em aquário. Ele chora, ri, se emociona. Ele brinca, canta, desenha, pinta. É um artista, um ator, um poeta. Ele vê a beleza das coisas, ele ama e se apaixona, mas ele também odeia. Ele briga, discute, quebra coisas, fala verdades e inverdades sem pensar, ele machuca, ele humilha, ele mata. O gerente emocional é muito rápido, espontâneo e briga o tempo todo com o insuportável do gerente lógico. 

Só que o gerente emocional tem uma coisa que o gerente lógico não tem: acesso à energia.

Se você estiver na véspera de uma prova importante, o seu gerente lógico vai querer atravessar a noite estudando. Mas o gerente emocional quer ir pra uma festa. O gerente lógico reclama e diz que não vai sair de cima dos livros. Aí, o gerente emocional desliga o gerador de energia, você fica com sono e dorme sem conseguir estudar. Pode ter certeza que, se decidisse ir à festa, você não estaria com sono.

A "energia" aqui é interpretada da mesma forma que o tantra tibetano: são os lungs que nos movem entre tristeza e alegria, apatia e euforia, amor e ódio, paz e raiva, aversão e desejo. O tipo de energia e sua intensidade influenciam o gerente emocional, que pode ou não alterar tanto o tipo quanto a intensidade dessa mesma energia.

Por exemplo, vimos alguém maltratando um cachorro. Imediatamente sentimos raiva dessa pessoa e queremos arrumar briga com ela, é a resposta automática a esse estímulo, é nosso impulso. Mas o gerente emocional pode entender a situação e trocar o ódio pelo acolhimento e pela proteção, se perceber que o cachorro estava atacando a pessoa antes e ela estava só tentando se defender, e assim tomar outras medidas.

Como o gerente emocional tem a chave do motor de energia, é através dele que nosso progresso espiritual ocorre. O gerente lógico só consegue ir até uma parte do caminho: ele pode memorizar textos e livros sagrados, pode recitar salmos de cor, pode até entender logicamente como todo o caminho deve ser percorrido. Mas ele não consegue ir adiante. Sua importância é fundamental, pois sem o mínimo conhecimento do caminho não há possibilidade de progresso, mas o caminho deve ser percorrido usando o gerente emocional.

Buda ensinou sobre as quatro nobres verdades, e esse é um conhecimento lógico: Dukkha existe, tem uma origem, pode ter um fim e há um caminho para esse fim. É racional, é lógico, e o papel do gerente lógico termina aí. O caminho de oito passos precisa ser trilhado pelo gerente emocional: transformar as ações negativas de corpo, fala e mente em ações positivas, praticar a meditação e alcançar a sabedoria.

Por exemplo, a Fala Correta: paramos de insultar, de caluniar, de mentir, de agredir verbalmente as pessoas, sejam quem forem e, ao invés, passamos a enaltecer, a elogiar, a falar e defender a verdade, a empoderar e a motivar, sempre para o maior benefício a todos os seres. As fichas dos estagiários vão sendo substituídas, uma a uma, com reações mais favoráveis e mais apropriadas nesse sentido. 

Enfim, os gerentes lógico e emocional são, normalmente, dois brigões que se detestam. Mas ao percorrer o caminho espiritual, eles vão se apaziguando e entrando em acordos. Ao fim, são como dois irmãos, pois possuem o mesmo objetivo e obedecem a um Senhor maior, que é a Consciência. Mas antes de vermos sobre a consciência, vamos estudar outros aspectos interessantes da nossa mente, como o Macaco Louco, na próxima postagem.




Decifrando a mente #3 - Piloto automático

 

As formas ao nosso redor nos chegam por meio dos nossos cinco sentidos. Nossa mente percebe apenas uma parte dessa informação e começa então a processá-la. Vou usar uma alegoria própria para ilustrar a forma como esse processamento é feito:

Inicialmente, a informação é passada para o setor de "piloto automático", onde uma infinidade de estagiários procuram as reações corretas para cada estímulo, baseado em uma série de fichas pré-cadastradas, divididas em três categorias: as reações instintivas (nascemos com elas), as habilidades (treinamentos de repetição) e as respostas prontas (aprendizado).
Para cada estímulo há uma série de reações possíveis, que são divididas como cartas, separadas por cores. Dependendo do estado mental vigente no momento, o estagiário seleciona a carta com a cor correspondente. 
O estado mental vai ser profundamente estudado mais tarde, mas vamos resumir: são os seis reinos citados na filosofia budista: reino dos deuses, dos semideuses, dos humanos, dos animais, dos seres famintos e dos infernos. Vamos imaginar que cada um deles tenha uma cor.
Imagine que você está dormindo e, repentinamente, toca o despertador. Se você estiver no reino dos humanos, você desliga o despertador, se levanta e vai se arrumar. Se estiver no reino dos animais, desliga o despertador e continua dormindo. Se estiver no reino dos infernos, você destrói o despertador.
Essas são reações automáticas, tomadas inconscientemente, de acordo com nosso estado mental no momento. Agimos no piloto automático a maior parte do tempo, sem perceber.
Se você estiver em uma padaria comendo um pão de queijo e se estiver no reino dos deuses, vai achar o pão de queijo uma porcaria indigna ao seu paladar exigente. No reino dos humanos, come sem nem se dar conta pois está preocupado com sua agenda. No reino dos seres famintos, o pão de queijo é insuficiente, você quer mais. No reino dos infernos, você se culpa e se martiriza porque está comendo algo que não é saudável e vai te fazer mal.
Os estagiários do piloto automático são muito importantes. Precisamos muito deles. São eles que dirigem nosso carro e que respondem "hã-hã" a alguém que está tagarelando assuntos que não nos interessam. São eles que nos permitem tomar banho e escovar os dentes. A andar de bicicleta, a dar um salto para trás quando aparece uma cobra, a repetir orações na igreja, a levantar uma parede de tijolos e a fazer todo o tipo de trabalho repetitivo que não exige muito raciocínio. Podemos praticamente viver o tempo todo apenas com os estagiários dirigindo nossas vidas.
Nascemos com algumas instruções já gravadas e esses são nossos instintos. Ninguém nos ensina a mamar, já nascemos sabendo. Temos medo de aranhas mesmo sem nunca ter visto uma. Não precisamos pensar para respirar, nem para coçar onde está coçando.
Quando precisamos de habilidades novas (como aprender a dirigir um carro, por exemplo), recebemos diversas instruções que são repetidas inúmeras vezes, até que os estagiários estejam com todas as cartas correspondentes e que já saibam fazer tudo sozinhos. Daí em diante, temos uma habilidade nova e não precisamos mais ficar pensando no que fazer, qual pedal apertar, que marcha colocar ou quando devemos ou não pisar no freio. É automático.
Por último, recebemos algumas cartas novas quando temos um aprendizado: Aprendemos uma única vez que o fogo queima, que se jogarmos uma pedra em um vidro ele vai quebrar, que o botão para ligar o rádio é aquele redondo. Uma vez aprendido, já sabemos, não precisamos aprender de novo, não precisamos repetir.
Enfim, o piloto automático é bastante útil para nos movermos no mundo com as dificuldades do dia a dia. Mas os estagiários não sabem resolver tudo, não possuem todo o conhecimento e precisam de monitoramento constante. Muitas vezes, precisamos trocar as cartas deles por outras melhores, mais eficazes, mais inteligentes, mais apropriadas. E os responsáveis por esse monitoramento e atualização são os dois gerentes da mente - o gerente lógico e o gerente emocional - que veremos logo a seguir.


Decifrando a mente #2 - Percepção

 

Os cinco Skandas são: formas, sentidos, percepção, formação mental e consciência.

Já vimos sobre os sentidos e vamos ver as formas mais tarde, quando estudarmos o Prajnaparamita. Hoje vamos estudar a Percepção.

Nossos sentidos trazem informações limitadas sobre o ambiente ao nosso redor. Nossa mente então realiza a percepção dessas informações, selecionando apenas as partes que interessam, de acordo com nossos estados mentais, a nossa energia e a bolha de realidade ativa no momento.

Por exemplo, quando estamos dormindo, não enxergamos nada. Nossa audição também fica drasticamente reduzida e às vezes nem sentimos quando alguém nos toca. Da mesma forma, se estamos com baixa energia, mesmo conscientes, percebemos apenas uma ínfima fração daquilo que enxergamos, ouvimos etc. E se estamos totalmente focados em alguma coisa, mesmo que plenamente conscientes, não percebemos as diversas outras coisas que acontecem ao redor no mesmo instante. Isso já foi demonstrado em vídeos onde precisamos contar quantas vezes uma pessoa pula, e não percebemos um ator vestido de elefante passando por trás dessa pessoa. Em uma conversa numa mesa de bar, com várias pessoas conversando ao mesmo tempo, geralmente só conseguimos prestar atenção em um diálogo e não conseguimos prestar atenção nos demais assuntos que estão sendo falados. Se estamos andando na rua, olhando para um celular, a chance de sofrermos um acidente por desatenção é enorme, e é por isso que é proibido dirigir e falar ao celular ao mesmo tempo. Só conseguimos prestar atenção em uma coisa de cada vez.

Nossa mente precisa focar em um assunto de cada vez e, para isso, precisa descartar todo o resto. Porém, nossa mente não funciona exatamente como um computador. Ela é muito mais complexa do que isso. Na verdade, é a mente que cria as realidades e molda as nossas percepções, e essa criação vem de um vazio luminoso muito mais amplo do que a mente.

Partimos do vazio luminoso e criamos uma identidade, uma identificação. Nesse momento, o vazio luminoso desaparece, dando lugar à identidade. Isso acontece muito rapidamente e não nos damos conta. Vemos uma flor e gostamos dela, achamos ela bonita, nos APEGAMOS a ela. É nesse momento que criamos uma identidade: o cara que gosta daquela flor. No momento seguinte, procuramos cuidar da flor, dando água a ela e falando sobre ela para as outras pessoas. E logo em seguida, queremos proteger aquela flor, atacando todo e qualquer parasita que chegar perto dela e impedindo que alguém a colha. Assim, sem perceber, criamos uma realidade que antes não existia. Essa realidade, essa identidade, brotou de um vazio luminoso que está disponível o tempo todo, mas não conseguimos mais ver o vazio. Só conseguimos ver a flor e a nossa identidade como aquele que gosta daquela flor, e isso é tão real que parece que é tudo o que temos. Descartamos todo o resto. É assim que a nossa mente filtra o que percebe e o que é descartado durante a percepção. A identidade é simbolificada pelo javali. O fato de querer nutrir e falar para todo mundo é o galo. A questão de querer proteger e afastar tudo o que puder ser uma ameaça é a cobra. O javali, o galo e a cobra criam, juntos, uma bolha de realidade. Um fragmento da realidade que só existe em nossa mente e que foi criada pela mente direto do vazio luminoso na qual ela opera.

Temos infinitas bolhas de realidade e trocamos de bolhas o tempo todo. Sempre vai ter somente uma no comando, mas ela fica pouco tempo e logo é substituída por outra. Algumas bolhas são mais sólidas: temos uma família, uma profissão, uma religião. Temos uma casa, um carro. São bolhas mais densas e difíceis de desapegar. A questão é que a bolha vigente na mente, naquele instante, define e projeta sobre as informações que recebemos através dos cinco sentidos aquilo que chamamos de percepção.

A percepção é uma interpretação da realidade feita pela mente, baseada na bolha de realidade que estiver vigente no momento e no estado mental em que ela estiver operando. Essa interpretação é limitada, frequentemente incompleta ou equivocada e cria realidades ilusórias e fantasiosas que acreditamos firmemente serem reais. O tempo todo, a cada instante. E não vemos todo o resto. Essas bolhas permanecem ativas somente enquanto houver energia para mantê-las.

Você está fazendo seu trabalho, normalmente, operando na bolha do profissional que é. De repente, escuta uma notícia de que seu time favorito perdeu um jogo. Nesse momento, você deixa a bolha do profissional e assume a bolha do torcedor e fica furioso com isso. A raiva é a energia que foi canalizada para a cobra da bolha do torcedor. Mas logo precisa voltar ao trabalho e assume a bolha do profissional novamente, e a energia é direcionada de volta para a bolha do profissional. Isso pode ser muito rápido, coisa de segundos apenas. Talvez você nem perceba que trocou de identidade tão rápido, mas no momento em que você estava ouvindo a notícia (audição), sua percepção focou apenas na notícia e você não conseguiu perceber mais aquilo que estava fazendo como profissional. É assim que a nossa percepção funciona.

Portanto, nossos sentidos já trazem apenas uma parte da realidade ao nosso redor, e a nossa mente ainda reduz essa informação apenas àquilo que a interessa no momento. Vivemos no mundo aproveitando  apenas cerca de 3% (ou menos) de tudo o que nos rodeia. Vivemos em bolhas de realidade, geralmente bem pequenas, limitadas e frágeis. Somos quase zumbis na Terra, sem desfrutar das imensas maravilhas que acontecem incessantemente, justamente porque nossa mente só percebe aquilo que interessa à bolha de realidade vigente no momento.

Ainda há a questão da retroalimentação da própria mente, que cria cenários que acreditamos ser reais, mas são pura criação da mente. Isso acontece nos sonhos e nas alucinações: muitas vezes os sonhos são tão reais que não percebemos que estamos sonhando. Estamos enxergando, ouvindo, sentindo, mas na verdade não estamos lá. Estamos dormindo placidamente na cama. Nossa mente possui algo parecido com um retroprojetor interno e, durante os sonhos, assistimos essa tela como se fosse um filme, incrivelmente real. Mesmo conscientes, às vezes entramos em devaneios. Nossa mente projeta um filme, nossa percepção está focada nele e, por vezes, nem percebemos a realidade ao nosso redor. Isso acontece com frequência quando estamos viajando de ônibus, por exemplo. Ficamos lembrando de cenas passadas, ou projetando realidades futuras. Nossa percepção está lá, nessa tela mental, e não aqui no mundo real.

Por fim, como operamos pulando de uma bolha de realidade para outra o tempo todo, não conseguimos perceber mais o vazio luminoso que está por trás disso tudo. Como neste texto: entre uma letra e outra, entre uma linha e outra, existe um espaço. Tem muito mais espaço do que letras, mas não percebemos o espaço. Apenas as letras. A percepção é mais ou menos assim.

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

21 semanas - #3 - Shamata pura

 

Shamata pura é a meditação na presença. Apenas estar aqui, percebendo tudo o que estiver ao redor, com todos os sentidos do corpo.

O primeiro estágio do samadhi acontece quando a meditação ocorre sem esforço, em paz, em silêncio. A respiração muda sozinha, ficando muito mais lenta e suave. O corpo inteiro é pacificado. A mente silencia, mas você ainda percebe sua operação incessante, criando realidades sem parar. Percebemos as realidades ao nosso redor com muito mais intensidade. As cores, os sons, os cheiros, as dores no corpo, tudo fica muito mais real, mais vívido, mais intenso. E nos damos conta de que tudo isso, mesmo mais real, ainda é pura construção da nossa mente.

Esses momentos de primeiro nível de samadhi duram poucos segundos, mas são preciosos. Eles sinalizam o lugar onde a mente deve repousar, e para onde devemos retornar sempre que sentamos em meditação. Uma vez alcançado o primeiro nível de samadhi, fica mais fácil retornar a ele depois, pois sabemos como ele é. Mas isso ainda está muito longe do despertar da natureza última, da iluminação final. É apenas o primeiro passo.

# Quarta feira, 17/09 - Refúgio, linhagem, motivação. Muita divagação. Usei uma técnica que funcionava no zen: deixava a mente adormecer e acordava repentinamente, direto para o estágio inicial de samadhi. Fiz umas três vezes, com sucesso. O último samadhi, no minuto final da meditação, foi bem intenso, estável e mais longo.

# Sábado, 20/09 - Um longo período de sucessivos samadhis nível 1. Em determinado momento, apenas repousei no samadhi e esqueci de mim mesmo. Creio ter tido a primeira experiência de samadhi nível 2, mesmo que bastante rápida. Entendi a frase "esquecer de si mesmo" do mestre Dogen. A iluminação não é um objetivo a ser alcançado. É algo que ocorre naturalmente quando suas identidades se dissolvem.

# Domingo, 21/09 - Meditação feita à noite antes de dormir, cansado. Poucos momentos de presença.

# Segunda, 22/09 - Longos períodos de presença (samadhi nivel 1). Ao final, não importava há quanto tempo estava meditando ou quanto tempo faltasse. A mente estava em um estado natural, quieta, em paz.

# Terça, 23/09 - Longo período de presença. Compreensão de um fato: O primeiro ensinamento de Buda foi sobre as quatro nobres verdades, e o segundo foi sobre o nobre caminho óctuplo. As quatro nobres verdades são lógicas e racionais, mas o nobre caminho óctuplo precisa ser seguido com a mente emocional. É a emoção que transforma nossa visão, nossa fala, nossa ação no mundo. É a emoção que senta para meditar e é a emoção que alcança a Sabedoria. A mente racional serve para entender e orientar esse caminho, mas é a emoção que efetivamente o trilha.

# Quarta, 24/09 - Bastante turbulento, mas alguns períodos de presença.

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

21 semanas - #2 - Shamata Impura

A segunda semana do roteiro de 21 itens do CEBB é a Shamata Impura.

Sentado em meditação, observo um ponto fixo à minha frente e mantenho a atenção nele. Observo minha respiração, observo a mente se debatendo e retorno a atenção ao ponto fixo, o tempo todo. Chamamos essa prática de Shamata Impura porque ela possui um objeto fixo e externo de foco. Normalmente, após alguns minutos, toda a imagem que vemos fica borrada e o único ponto nítido é o nosso objeto de foco.

#segunda feira 08/09/25: recordo os votos da motivação. Grande dificuldade em manter a atenção fixa em um único ponto. A mente tenta, de todas as formas, sair dessa armadilha. Lembra de coisas a fazer, textos a escrever, contas a pagar, coisas a falar. Não tendo saída, ela provoca sono, divagações e sonhos. Retorno para o presente, incessantemente. Nenhum samadhi ou momento de plena atenção.

#terça-feira 09/09/25: 1 minuto recordando a motivação. Mais facilidade para manter a atenção. Diversos, rápidos e recorrentes momentos de primeiro nível de samadhi. Mente ainda bastante agitada, porém apenas um episódio rápido de sonolência. 

#quarta-feira 10/09/25: 1 minuto de motivação. Samadhi mais estável e com mais disciplina. Consigo ter consciência nos momentos em que estou sonolento ou divagando. Mente mais calma e menos agitada.

#quinta-feira 11/09/25: 30" motivação. Mente um pouco mais agitada devido ao avançado da hora da meditação. Mesmo assim, pelo menos três momentos de samadhi nível 1 perfeitos, durando cerca de dez segundos cada. 

#sexta-feira 12/09/25: refúgio e motivação. Bastante sonolência por ter dormido pouco. Vários períodos de samadhi nível 1, sendo o último bem longo. 


21 semanas - #1 - Motivação

O CEBB (Centro de Estudos Budistas Bodhisatva) possui um programa de 21 dias de meditação, que já fiz diversas vezes. Mas, desta vez, vou fazer o programa em 21 semanas. 

Assim, tenho mais tempo para aprofundar a compreensão em cada um dos itens abordados.

A primeira semana teve como tema a MOTIVAÇÃO.

Eu iniciei com a motivação que eu tinha: me tornar uma pessoa melhor e ver as coisas com maior clareza. 

Entendi que não era suficiente. Eu precisava incluir o resto do mundo nessa motivação, senão ela seria fraca e não me levaria muito longe.

Terminei entendendo que minha motivação para a prática é:

"Praticar para parar de prejudicar os seres, para beneficiar todos os seres, para ter maior controle sobre minha mente e assim ter os meios hábeis para saber a melhor forma de fazer tudo isso".

Dá pra resumir mas, em suma, é isso.

Daqui em diante continuo com o programa. O próximo item é a Shamata Impura.

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Decifrando a mente #1: os cinco sentidos

Nos últimos noventa dias, tenho observado a minha mente em detalhes, tentando organizar as coisas e entender o funcionamento da mente. Acabei fazendo um mapa mental bem interessante, que começa com os sentidos, passa para as percepções, para a formação mental e, por último, para a consciência. Na formação mental, percebi a existência de um departamento de respostas automáticas, gerenciado por um gerente lógico e outro gerente emocional, incluindo vários outros elementos como memória, energia, macaco louco, projetor, narrador, tela mental etc. Entendi que essa descrição coincidia em vários elementos com os cinco Skandhas, já estudado exaustivamente há milhares de anos pelos filósofos da India. O budismo incorporou os cinco Skandhas por entendê-los como verdadeiros, e minha própria experiência também levou ao mesmo entendimento:

Forma: o seu corpo não é você. Ele é impermanente, muda o tempo todo e é parte de tudo o que existe a seu redor. Seu corpo é apenas um amontoado de moléculas, organizadas em células, cada uma com uma função, e em lugar algum de seu corpo é possível encontrar um único átomo que seja "você". Nenhuma forma é real, sólida e permanente. Uma árvore não é uma árvore, é um conjunto de infinitas coisas que chamamos de árvore.

Sentidos: Visão, audição, olfato, paladar, tato. Olhos, ouvidos, nariz, língua e corpo. São as "portas de entrada das percepções". Não são você, são apenas impressões impermanentes e limitadas do mundo a seu redor.

Percepções: A projeção que sua mente coloca sobre as impressões captadas pelos sentidos. É impermanete, mutável e depende dos estados mentais que estão atuando em cada momento. 

Formações Mentais: Seus pensamentos são impermanentes e dependem dos mapas mentais que estão atuando, das suas referências, memórias, energias, contextos, enfim, a sua mente cria e modifica as formações mentais o tempo todo e elas não são você.

Consciência: Ela é impermanente, depende de seus conhecimentos, da sua atenção e no que você está focado no momento. Quando você está inconsciente, ainda assim continua vivo, portanto, sua consciência não é você

O estudo que fiz da minha mente não levou inicialmente em consideração essa descrição dos cinco skandhas. Na verdade, eu havia esquecido deles e, só depois de fazer o desenho abaixo é que fui estudar melhor e perceber a semelhança. Esse é o mapa que fiz desse estudo:


Então, vou manter esse mapa, explicando em detalhes cada um dos itens de acordo com o meu entendimento. Segundo os cinco Skandhas, eu deveria começar pelas formas, mas vou abordar as formas em uma futura postagem sobre o Prajnaparamita e vou seguir conforme meu estudo, começando pelos cinco sentidos:

Visão: nossos olhos enxergam a refração da luz sobre as moléculas, conforme aprendemos na escola: um raio de luz é refletido pela molécula, e sua cor e intensidade dependem do ângulo do nosso olho em relação à molécula e à fonte de luz, das propriedades ópticas do meio, da velocidade da luz no meio, e do desvio de direção do raio de luz. Assim, uma fonte de luz branca intensa pode bater na molécula, ser refletida e chegar a nossos olhos com uma cor vermelha fraca, por exemplo. Mas a molécula, em si, não tem cor nenhuma. São apenas partículas infinitamente pequenas em um vasto espaço vazio. A cor da molécula depende unicamente da refração da luz que incide sobre ela. Assim, uma azeitona, por exemplo, não possui cor nenhuma em si. Mas a luz que reflete sobre suas moléculas nos dá a impressão de que ela é verde. Se desligarmos as luzes, não enxergamos mais a azeitona, mas ela continua ali, exatamente igual. Se jogarmos uma luz colorida sobre ela, ela terá uma cor diferente do verde. Nossos olhos apenas captam essa refração da luz, montando um quadro de cores que será interpretado pelo nosso cérebro. A propósito, nós enxergamos tudo de cabeça para baixo e invertido. Nosso cérebro é que ajusta essa imagem, "desinvertendo" ela, sem que sequer a gente perceba isso. Outro fato é que há um delay entre o objeto e a nossa captação da refração da luz que incide sobre o objeto. Sim, estamos sempre vendo o passado, por mais instantâneo que ele pareça. Se você olhar a sua mão agora, vai ver a refração da luz sobre átomos que não estão mais exatamente ali. Eles já se moveram um pouco até o seu olho conseguir captar a luz refletida neles. Como as galáxias: elas estão tão longe que podemos estar vendo estrelas que já explodiram há centenas de anos e, com certeza, as estrelas que estamos vendo agora não estão mais ali neste momento. Estamos olhando o passado, onde elas estiveram há anos atrás. Ademais, não conseguimos enxergar todo o espectro de cores existentes, apenas as que estão acima do infravermelho e abaixo do ultravioleta e, mesmo assim, podemos ter deficiências visuais, como miopia, astigmatismo, daltonismo e outras doenças que impedem a percepção da luz de forma correta.
Audição: Tudo o que existe no Universo é frequência. Os átomos se movem em determinadas frequências, assim como todos os materiais, planetas e galáxias inteiras. A Terra "respira" em frequências de 26 segundos e isso já foi até constatado pelos cientistas. As frequências produzem deslocamentos no ar, chamados de ondas sonoras. Nossos ouvidos possuem pequenos ossinhos e membranas que são capazes de captar essas ondas, interpretando-as como som audível. Temos uma capacidade bastante limitada para as frequências sonoras que somos capazes de ouvir: apenas os sons entre 20 hertz e 20.000 hertz. Por isso, não escutamos os apitos para cachorros, por exemplo, nem a maioria das ondas sísmicas da Terra, captadas normalmente por quase todos os animais que existem. Também não ouvimos sinais de rádio nem de microondas, que apesar de serem frequências eletromagnéticas, não produzem ondas sonoras. Essas frequências podem ser captadas e interpretadas por mecanismos específicos, como o seu celular, por exemplo, mas não pelos seus ouvidos. E assim como a visão, podemos também ter limitações e distúrbios auditivos que nos trazem essas frequências de forma distorcida.

Olfato: As propriedades organolépticas dos elementos químicos podem ser percebidas pelos sensores olfativos que temos em nosso nariz, com maior ou menor precisão dependendo de cada indivíduo. Os elementos químicos possuem uma certa volatidade, ou seja, eles "evaporam" em moléculas que podem ser carregadas pelo ar. Quanto mais volátil for o material, maior o cheiro que sentimos. Por isso o vidro não tem cheiro, afinal, sua volatilidade é quase nula, enquanto sentimos muito intensamente o cheiro de gasolina, pois ela evapora com facilidade. Cada molécula possui uma característica organoléptica própria que a identifica, e  nosso cérebro aprende a identificá-las. Dessa forma, quando sentimos cheiro de laranja, sabemos que é cheiro de laranja porque já sentimos esse cheiro antes e conseguimos identificá-lo como tal. Mas nosso olfato é muito limitado. Aves de rapina conseguem sentir o cheiro de um animal morto a quilômetros de distância, cães possuem um excelente faro e são capazes de seguir rastros usando apenas o olfato. O nosso espectro olfativo é bem restrito e, por isso, não sentimos o cheiro do monóxido de carbono, por exemplo, que é um gás tóxico e mortal. Distúrbios olfativos também impedem que possamos sentir o verdadeiro aroma das fragrâncias.

Paladar: nossas papilas gustativas são capazes de identificar e combinar os vários sabores, que podemos classificar genericamente como: doces, azedos, salgados, amargos e umami. Para quem não sabe, "umami" é conhecido como o "quinto sabor" e descreve uma sensação saborosa e carnuda que intensifica outros sabores. É detectado através de aminoácidos como o glutamato, encontrado em queijos, tomates maduros, carnes e cogumelos. Mas nosso paladar é muito restrito. Ao tomar um copo de água, não somos capazes de identificar com muita precisão os elementos que estão nela. Apenas pessoas com um paladar muito apurado e após anos de treino é capaz de diferenciar um determinado vinho em comparação com outro do mesmo tipo. Distúrbios no paladar nos impedem de sentirmos os verdadeiros sabores dos alimentos. 

Tato: Por ser o mais antigo e primordial de todos, o tato é o mais preciso e complexo sentido que possuímos. Conseguimos sentir o toque mais suave da mais leve pluma em nossa pele. Sentimos quando algo está quente ou frio, se é duro ou mole, áspero ou liso. Sentimos as formas dos objetos que tocamos, até o ponto de conseguirmos ler textos em braille. Por ser tão intenso e primitivo, o tato é o principal sentido que nos desperta a sensualidade. Mesmo assim, não somos capazes de entender que a solidez dos materiais é apenas uma repulsão eletromagnética em nível atômico. Pegamos uma pedra na mão e a sentimos como sólida, mas se observarmos essa mesma pedra em um microscópio eletrônico, veremos apenas moléculas organizadas, mas com vasto espaço vazio entre elas. As moléculas se atraem e se organizam, criando uma superfície de repulsão que apenas sentimos ser sólida. Uma janela de vidro parece ser sólida, mas conseguimos enxergar através dela, ou seja, há espaço entre as moléculas suficiente para que a luz a atravesse normalmente. Um raio x consegue atravessar nosso corpo como se fôssemos feitos de gelatina. Aquilo que nosso tato nos diz que é sólido, na verdade não é tão sólido assim. A água é líquida, mas abaixo de 0ºC, suas moléculas se organizam de outra forma e ela fica sólida. E, acima de 100ºC, vira vapor. Mas continua sendo a mesma água, a mesma molécula, apenas organizada de forma diferente. Nosso tato não consegue entender isso muito bem.

Há ainda outras percepções que extrapolam os cinco sentidos e acessam áreas sutis, que chamamos de "percepções extrasensoriais", como a telepatia e a clarividência, mas vamos nos ater apenas aos cinco sentidos tradicionais. 

Resumindo, os cinco sentidos nos trazem informações a respeito do mundo ao nosso redor, de forma limitada e obtusa, mas suficiente para conseguirmos entender o ambiente e interagir com ele. 

Nas próximas postagens, abordaremos a forma como nossa mente percebe e interpreta essas informações.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Atravessando o deserto

Nas mais diversas tradições e filosofias que buscam reconectar a pessoa a Deus ou à Natureza Última, incluindo o budismo, há um período no caminho que é chamado de o Grande Deserto. Jesus, Maomé, em todas as literaturas sagradas existem relatos de travessias de desertos como metáforas para esse período do caminho.

No começo de todos os caminhos, tudo é novidade. Tudo brilha. Tudo é possível. Você faz as práticas e elas vão dando resultados. Você enxerga as coisas mais coloridas e com mais realidade. Você se empolga e começa a praticar mais, buscando cada vez melhores resultados. Mas aí chega o Grande Deserto.

Nesse período, parece que nada acontece. Não há mais insights, samadhis, tudo fica mais difícil. A prática passa a não ter mais sentido. Tudo fica cinza e insosso. Tudo é terrivelmente normal.

Esse período pode durar anos ou até uma vida inteira. A pessoa abandona a prática. Não tem mais motivo para se privar dos prazeres da vida. A iluminação é impossível, não tem por que abandonar a vida comum. Não há nada a se alcançar.

Mas, em determinado momento, o praticante se dá conta de que está no Grande Deserto. Se recorda de como era bom ter aqueles pequenos insights e enxergar a vida de uma forma mais colorida e nítida. Então, ele volta a praticar.

E, como por mágica, todas aquelas sensações voltam. As coisas começam a se conectar, o praticante consegue entender melhor o caminho, pois passou bastante tempo e ele conseguiu entender isoladamente cada prática, e agora ele entende como tudo se conecta. Agora ele sabe até onde o caminho leva.

Pode parecer estranho, mas o caminho não leva a lugar algum. Não há ganho, nem perda. Não há benefício, nem malefício. Não há iluminação, nem não-iluminação. Não há nada a ser alcançado, nenhuma realização, nenhum poder mágico a ser adquirido. Não há alguém a ser iluminado.

Buda poderia ter começado seus ensinamentos explicando os 12 Elos, ou a Roda da Vida, com os Seis Reinos e os Três Venenos, ou descrevendo o Nirvana. É o cerne do budismo. Mas não, ele começou explicando as Quatro Nobres Verdades e o Nobre Caminho Óctuplo. Não foi por acaso, pois a Roda da Vida está na Segunda Nobre Verdade, o Nirvana está na Terceira e o Nobre Caminho Óctuplo na Quarta. Está tudo ali, conectado. Tudo faz sentido e, de qualquer ângulo que se observe, todos os ensinamentos sempre, sem exceção, apontam para a Natureza Última. Optar por começar a ensinar pelas Quatro Nobres Verdades foi uma decisão brilhante e didática, pois todos conseguiriam entender. Afinal, todos estão sujeitos a Dukkha e entendem o que é o sofrimento.

Os 12 Elos descrevem como são criadas as identidades (javali, galo e cobra, os 3 venenos) que levam a Dukkha. O primeiro elo é Avidya, ou seja, a perda da visão, a perda da Mente Buda. É nesse momento que nasce o javali, que vai dar origem a todo o resto. É nesse momento que criamos as bolhas de realidade, as identidades, os egos, as ilusões. Da ilusão vem o apego a tudo o que sustenta essa identidade (o galo) e a aversão a tudo o que desafia ou nega essa identidade (a cobra). O caminho budista é simples: abandonar Avidya e retornar a Vidya (visão), a Mente Buda. Simples assim, mas astronomicamente distante de ser fácil, pois não queremos de jeito algum abandonar nossas identidades.

Quando atravessamos o Grande Deserto e entendemos como tudo se conecta, tudo passa a fazer sentido. Podemos ver claramente o caminho e até onde ele leva. Sabemos que não há ganho algum no final, pois não há identidade a ganhar alguma coisa. Mas sabemos que, despertos na Mente Buda, estaremos evitando provocar qualquer dano ou malefício a nenhum ser vivo, teremos consciência e meios hábeis para beneficiar o máximo possível de seres e teremos domínio sobre a nossa mente. 

Nenhum título honorário por isso. Nenhum reconhecimento. Nenhum prêmio. Apenas a clareza de saber como fazer o bem, evitar o mal e dominar o cabeção. O despertar não é individual, pois não há indivíduo a ficar desperto. Não é a mente nem a identidade criada pela mente que desperta. É a Mente Buda, juntamente com todos os seres e tudo o que existe no Universo. Ninguém desperta sozinho. Não há iluminação sozinho. É por isso que a primeira das quatro qualidades incomensuráveis é justamente o amor. O amor traz a compaixão, que traz a alegria, que traz a equanimidade. Sem amor, sem compaixão, o caminho nem começa.

E o caminho só começa de verdade depois do Grande Deserto. É nesse período que encontramos a motivação, o primeiro passo do caminho. Só depois de entender que não há uma identidade que possa alcançar a iluminação sozinha, que todos os seres possuem (e são) a Natureza Última, que os seres estão deludidos e que precisamos abandonar as identidades para poder despertar a Mente Buda, para então poder parar de prejudicar e poder ajudar todos os seres a também alcançarem juntos o Despertar, só então é que temos a motivação correta e podemos dar o segundo passo.

Podemos entender racionalmente essa motivação, mas ela só vai fazer sentido mesmo quando a contemplarmos, quando a compreendermos e a realizarmos totalmente. Daí em diante, o caminho se torna possível. Sem a motivação correta, sem amor e compaixão por todos os seres, não há caminho e, portanto, não se chega a lugar algum. Há apenas a perda de tempo, o balançar de um entendimento a outro, poucos avanços e muitos retrocessos. Um caminhar em círculos. Depois da motivação correta, tudo o que existe é o caminho. Todos passam a ser professores do Dharma. Há uma outra energia interna que passa a nos mover, e ela não vem do ego, nem da mente, ela é outra coisa, é uma energia luminosa que cria as realidades de forma pura. Essa energia é vazia de identidades e vai se manifestando em cada passo que damos e aprendemos a nos mover com ela.

É nesse momento que compreendemos o PrajnaParamita: As coisas são, mas não são como achamos que são. Elas apenas são. Não há identidades nas coisas como elas são. Há apenas a vacuidade e essa vacuidade é luminosa. Você não está vendo as palavras que estão escritas aqui. Você está vendo pixels. Mas a sua mente capta esses pixels, projeta uma realidade em cima deles e transforma em letras, em palavras, que então você consegue entender. Mas não há palavra nenhuma aqui. Os pixels são livres das palavras, das formas e do conteúdo. Só há espaço vazio, mas a sua mente acha que tem um texto escrito, e consegue ler, e consegue entender. Mas se os mesmos pixels fossem arranjados em hieróglifos egípcios, talvez você não entendesse nada. É a luminosidade da sua mente que consegue dar significado ao que está escrito aqui. E se outra pessoa ler o mesmo texto, vai entender outra coisa, um pouco diferente do que você entendeu, pois ela tem outros referenciais, outras memórias, outras bases de entendimento e outras opiniões.

E, assim, todo o caminho budista passa a ter um sentido diferente do que achávamos lá no início.

Eu comecei a me interessar pelo budismo lendo os livros do Lobsang Rampa, lá pelos 16 anos. Não tinha nada a ver com budismo de verdade, era mais uma espécie de guia para despertar poderes sobrenaturais, uma historinha bonitinha para boi dormir, mas era o referencial que eu tinha na época. Comecei a estudar o budismo de verdade somente a partir de 2006, há 19 anos. Pratiquei metade do tempo no Zen japonês e a outra metade no CEBB, de tradição tibetana. Mas só agora, em 2025, com 54 anos, fui realmente entender o caminho. 

Antes tarde do que mais tarde.

Se você também está atravessando o Grande Deserto neste momento, não desista. Continue praticando, com menos intensidade, apenas alguns minutos por dia, apenas um ou dois dias por semana. Mas não pare. Ouça palestras, assista vídeos, mantenha o contato com a sua linhagem de preferência, seja de qual tradição ou religião for. Vai chegar o momento em que você atravessará o Grande Deserto e, então, o verdadeiro caminho irá começar.

Boa sorte.