terça-feira, 2 de setembro de 2025

Atravessando o deserto

Nas mais diversas tradições e filosofias que buscam reconectar a pessoa a Deus ou à Natureza Última, incluindo o budismo, há um período no caminho que é chamado de o Grande Deserto. Jesus, Maomé, em todas as literaturas sagradas existem relatos de travessias de desertos como metáforas para esse período do caminho.

No começo de todos os caminhos, tudo é novidade. Tudo brilha. Tudo é possível. Você faz as práticas e elas vão dando resultados. Você enxerga as coisas mais coloridas e com mais realidade. Você se empolga e começa a praticar mais, buscando cada vez melhores resultados. Mas aí chega o Grande Deserto.

Nesse período, parece que nada acontece. Não há mais insights, samadhis, tudo fica mais difícil. A prática passa a não ter mais sentido. Tudo fica cinza e insosso. Tudo é terrivelmente normal.

Esse período pode durar anos ou até uma vida inteira. A pessoa abandona a prática. Não tem mais motivo para se privar dos prazeres da vida. A iluminação é impossível, não tem por que abandonar a vida comum. Não há nada a se alcançar.

Mas, em determinado momento, o praticante se dá conta de que está no Grande Deserto. Se recorda de como era bom ter aqueles pequenos insights e enxergar a vida de uma forma mais colorida e nítida. Então, ele volta a praticar.

E, como por mágica, todas aquelas sensações voltam. As coisas começam a se conectar, o praticante consegue entender melhor o caminho, pois passou bastante tempo e ele conseguiu entender isoladamente cada prática, e agora ele entende como tudo se conecta. Agora ele sabe até onde o caminho leva.

Pode parecer estranho, mas o caminho não leva a lugar algum. Não há ganho, nem perda. Não há benefício, nem malefício. Não há iluminação, nem não-iluminação. Não há nada a ser alcançado, nenhuma realização, nenhum poder mágico a ser adquirido. Não há alguém a ser iluminado.

Buda poderia ter começado seus ensinamentos explicando os 12 Elos, ou a Roda da Vida, com os Seis Reinos e os Três Venenos, ou descrevendo o Nirvana. É o cerne do budismo. Mas não, ele começou explicando as Quatro Nobres Verdades e o Nobre Caminho Óctuplo. Não foi por acaso, pois a Roda da Vida está na Segunda Nobre Verdade, o Nirvana está na Terceira e o Nobre Caminho Óctuplo na Quarta. Está tudo ali, conectado. Tudo faz sentido e, de qualquer ângulo que se observe, todos os ensinamentos sempre, sem exceção, apontam para a Natureza Última. Optar por começar a ensinar pelas Quatro Nobres Verdades foi uma decisão brilhante e didática, pois todos conseguiriam entender. Afinal, todos estão sujeitos a Dukkha e entendem o que é o sofrimento.

Os 12 Elos descrevem como são criadas as identidades (javali, galo e cobra, os 3 venenos) que levam a Dukkha. O primeiro elo é Avidya, ou seja, a perda da visão, a perda da Mente Buda. É nesse momento que nasce o javali, que vai dar origem a todo o resto. É nesse momento que criamos as bolhas de realidade, as identidades, os egos, as ilusões. Da ilusão vem o apego a tudo o que sustenta essa identidade (o galo) e a aversão a tudo o que desafia ou nega essa identidade (a cobra). O caminho budista é simples: abandonar Avidya e retornar a Vidya (visão), a Mente Buda. Simples assim, mas astronomicamente distante de ser fácil, pois não queremos de jeito algum abandonar nossas identidades.

Quando atravessamos o Grande Deserto e entendemos como tudo se conecta, tudo passa a fazer sentido. Podemos ver claramente o caminho e até onde ele leva. Sabemos que não há ganho algum no final, pois não há identidade a ganhar alguma coisa. Mas sabemos que, despertos na Mente Buda, estaremos evitando provocar qualquer dano ou malefício a nenhum ser vivo, teremos consciência e meios hábeis para beneficiar o máximo possível de seres e teremos domínio sobre a nossa mente. 

Nenhum título honorário por isso. Nenhum reconhecimento. Nenhum prêmio. Apenas a clareza de saber como fazer o bem, evitar o mal e dominar o cabeção. O despertar não é individual, pois não há indivíduo a ficar desperto. Não é a mente nem a identidade criada pela mente que desperta. É a Mente Buda, juntamente com todos os seres e tudo o que existe no Universo. Ninguém desperta sozinho. Não há iluminação sozinho. É por isso que a primeira das quatro qualidades incomensuráveis é justamente o amor. O amor traz a compaixão, que traz a alegria, que traz a equanimidade. Sem amor, sem compaixão, o caminho nem começa.

E o caminho só começa de verdade depois do Grande Deserto. É nesse período que encontramos a motivação, o primeiro passo do caminho. Só depois de entender que não há uma identidade que possa alcançar a iluminação sozinha, que todos os seres possuem (e são) a Natureza Última, que os seres estão deludidos e que precisamos abandonar as identidades para poder despertar a Mente Buda, para então poder parar de prejudicar e poder ajudar todos os seres a também alcançarem juntos o Despertar, só então é que temos a motivação correta e podemos dar o segundo passo.

Podemos entender racionalmente essa motivação, mas ela só vai fazer sentido mesmo quando a contemplarmos, quando a compreendermos e a realizarmos totalmente. Daí em diante, o caminho se torna possível. Sem a motivação correta, sem amor e compaixão por todos os seres, não há caminho e, portanto, não se chega a lugar algum. Há apenas a perda de tempo, o balançar de um entendimento a outro, poucos avanços e muitos retrocessos. Um caminhar em círculos. Depois da motivação correta, tudo o que existe é o caminho. Todos passam a ser professores do Dharma. Há uma outra energia interna que passa a nos mover, e ela não vem do ego, nem da mente, ela é outra coisa, é uma energia luminosa que cria as realidades de forma pura. Essa energia é vazia de identidades e vai se manifestando em cada passo que damos e aprendemos a nos mover com ela.

É nesse momento que compreendemos o PrajnaParamita: As coisas são, mas não são como achamos que são. Elas apenas são. Não há identidades nas coisas como elas são. Há apenas a vacuidade e essa vacuidade é luminosa. Você não está vendo as palavras que estão escritas aqui. Você está vendo pixels. Mas a sua mente capta esses pixels, projeta uma realidade em cima deles e transforma em letras, em palavras, que então você consegue entender. Mas não há palavra nenhuma aqui. Os pixels são livres das palavras, das formas e do conteúdo. Só há espaço vazio, mas a sua mente acha que tem um texto escrito, e consegue ler, e consegue entender. Mas se os mesmos pixels fossem arranjados em hieróglifos egípcios, talvez você não entendesse nada. É a luminosidade da sua mente que consegue dar significado ao que está escrito aqui. E se outra pessoa ler o mesmo texto, vai entender outra coisa, um pouco diferente do que você entendeu, pois ela tem outros referenciais, outras memórias, outras bases de entendimento e outras opiniões.

E, assim, todo o caminho budista passa a ter um sentido diferente do que achávamos lá no início.

Eu comecei a me interessar pelo budismo lendo os livros do Lobsang Rampa, lá pelos 16 anos. Não tinha nada a ver com budismo de verdade, era mais uma espécie de guia para despertar poderes sobrenaturais, uma historinha bonitinha para boi dormir, mas era o referencial que eu tinha na época. Comecei a estudar o budismo de verdade somente a partir de 2006, há 19 anos. Pratiquei metade do tempo no Zen japonês e a outra metade no CEBB, de tradição tibetana. Mas só agora, em 2025, com 54 anos, fui realmente entender o caminho. 

Antes tarde do que mais tarde.

Se você também está atravessando o Grande Deserto neste momento, não desista. Continue praticando, com menos intensidade, apenas alguns minutos por dia, apenas um ou dois dias por semana. Mas não pare. Ouça palestras, assista vídeos, mantenha o contato com a sua linhagem de preferência, seja de qual tradição ou religião for. Vai chegar o momento em que você atravessará o Grande Deserto e, então, o verdadeiro caminho irá começar.

Boa sorte.


 








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