terça-feira, 18 de setembro de 2012

O EU é ilusão

Inumeráveis textos da literatura budista (e de outras religiões) repetem incansavelmente que o EU É ILUSÃO. Mas enquanto não compreendermos isso, estas são apenas belas palavras que podem ser impressas, emolduradas e penduradas na parede.

Precisamos compreender profundamente o verdadeiro sentido desta afirmação. Esse é o primeiro passo para entendermos e aceitarmos nossa condição atual, a fim de nos libertarmos das amarras que encobrem nossa verdadeira natureza como as cascas de uma cebola.

Gautama Buda alcançou a mais profunda compreensão da realidade e afirmou: "Maravilha das maravilhas. Todos os seres são completos e perfeitos, dotados de virtude e sabedoria, mas os pensamentos ilusórios impedem que percebam isso". Este foi o primeiro grande ensinamento de Shakyamuni Buda. Não é difícil compreender esta verdade. Basta seguir esta linha de pensamentos:

1) Nossa personalidade é formada por inúmeros eus, ou 'egos'. A cada momento, um ego assume o controle do barco e direciona nossas energias para alcançar seu determinado e próprio objetivo. A própria palavra 'personalidade' deriva do latim 'persona', que quer dizer 'máscara', ou seja, nossa personalidade nada mais é do que uma máscara que usamos temporariamente para atuarmos na sociedade. A personalidade muda o tempo todo. Quando um ego romântico assume o controle, nos tornamos românticos. Quando é um ego raivoso que está no comando, nos tornamos raivosos, e assim por diante. Compreendendo isso, fica fácil concluir que na verdade não temos uma personalidade real e única, mas CADA EGO que nos habita tem sua própria personalidade.

2) O ego não existe por si só. Se você meditar profundamente sobre um determinado ego, vai perceber que ele se desvanece como uma nuvem. Ele não possui essência, não tem nada de concreto, é apenas uma associação de pensamentos que adquire uma personalidade própria. É como um fluir de pensamentos e emoções que se enredam e assumem a ilusão de ser alguma coisa real. Todos os egos são apenas associações de pensamento, assumem uma personalidade e quando estão no comando temos tanta certeza de sua existência que pensamos: este sou eu, eu sou assim, eu quero isso, eu não quero aquilo, é minha opinião. Porém, nada mais falso, são apenas pensamentos agrupados e associados que assumem vida própria e por alguns momentos acabam por assumir o comando.

3) Todo ego tem origem em algum tipo de apego. Existem três tipos de apego, os três venenos: aversão, desejo e ilusão. Ao passar por uma loja, vemos um objeto qualquer e sentimos imensa vontade de ter aquele objeto (roupa, sapato, livro, o que for). Quando saímos do trabalho, ficamos presos no trânsito e isso nos torna nervosos, queremos sumir dali, buzinamos para que o carro da frente ande mais rápido, queremos nos mover e não podemos, simplesmente não queremos ficar ali presos no trânsito. Quando alguém nos contraria, retrucamos: com quem você acha que está falando? Sabe quem eu sou? Ponha-se no seu lugar! Estes são apenas alguns exemplos para mostrar como agem os nossos egos: o desejo pelo que não temos, a aversão pelo que não queremos e a ilusão de sermos alguém especial, melhor ou pior do que as outras pessoas.

4) Todo apego (portanto todo ego) leva à insatisfação e consequentemente ao sofrimento. É impossível saciar um ego. Não há como um ego alcançar a satisfação plena, ele sempre vai querer mais. Após uma breve saciedade, poderá ficar latente por algum tempo, mas depois retornará querendo mais. Quando um ego está parcialmente saciado, dá lugar a outro ego, portanto vivemos ininterruptamente em busca da satisfação e saciedade, como burros correndo atrás de uma cenoura. Um objetivo que jamais poderá ser alcançado. O ego pode proporcionar momentos de prazer e alegria, mas não pode nos prover da mais genuína felicidade, pois isso vai contra sua própria natureza. A natureza do ego é o desejo, fundamentado na insatisfação. Logicamente, não é possível encontrar a felicidade com a satisfação do ego: teremos apenas um momento de prazer e em seguida estaremos novamente buscando a satisfação de outro ego, em um círculo vicioso infinito. Como o ego não tem qualquer fundamento ético ou moral, a satisfação de determinados desejos irá fatalmente criar sofrimento para si e/ou para outras pessoas. Palavras ditas com a intenção de satisfazer um ego poderão ferir profundamente a outrem.

5) Lutar contra o ego é uma guerra perdida. Isso pode ser explicado matematicamente: um praticante de meditação sabe que consegue ficar plenamente desperto somente alguns momentos durante o dia. O resto do tempo está adormecido e sendo jogado de ego para ego como um barco à deriva. Os egos se sucedem como elos de uma corrente interminável. Os raros momentos de samadhi advindos da meditação interrompem brevemente essa corrente. Nesses momentos, estamos lúcidos e, apesar de ainda percebermos a presença do ego, conseguimos agir sem sua influência. Digamos que um praticante consiga ficar desperto por 1% do tempo do dia, ou seja, por uns 10 minutos. Acredite, isso já é bastante coisa. Então temos que por 10 minutos estamos conscientes e pelos 950 minutos restantes (levando em consideração um dia útil de 16 horas) ficamos à deriva e à mercê de nossos egos. Não precisa ser nenhum gênio para perceber que lutar contra o ego é uma guerra perdida. Ele tem muito mais força, está no comando por muito mais tempo, é muito mais esperto e tem a habilidade de criar artimanhas que nos vencem facilmente. Uma das artimanhas é nos provocar SONO durante a meditação, ou ficar o tempo todo nos lembrando de coisas a fazer, como uma agenda eletrônica irritante ligada em 220 volts. Portanto, qualquer luta que empreendermos contra o ego estará fadada ao fracasso. Não é esse o caminho, ele não levará a nada e você estará correndo sérios riscos de ficar neurótico, obsessivo, depressivo e até com tendências suicidas.

6) Egos não alimentados enfraquecem e morrem sozinhos. Esta foi uma das grandes constatações de Gautama Buda. Em cima dessa constatação foram elaborados os preceitos budistas e o nobre caminho óctuplo. Se tivermos um modo de vida correto, estaremos deixando de alimentar o ego, ele perderá forças e aos poucos iremos libertando energia para a nossa verdadeira consciência, nossa natureza búdica. Cada preceito por si só tem o poder de liberar enormes quantidades de energia. Por exemplo, 'não mentir, mas defender a verdade'. Gastamos energia mental para fantasiarmos uma mentira e depois para lembrar e reafirmar a mesma quantas vezes for necessário. Se tivermos o hábito de mentir, acabamos por perder uma imensa quantidade de energia diariamente, simplesmente para sustentar fatos que não aconteceram ou pelo menos que não aconteceram DAQUELE jeito. Porém, se optarmos por falar sempre a verdade, não precisaremos nos preocupar em lembrar qual mentira contamos. Basta falar a verdade. Pronto, um montão de energia liberada para nossa verdadeira natureza! E o mesmo ocorre para os demais 15 preceitos observados por todos os praticantes leigos. Se conseguirmos observar todos os 16 preceitos o tempo todo, veremos aos poucos que nossa mente se torna mais clara, mais calma, centrada, conseguimos ver as coisas com mais clareza e não ficamos 'viajando' tanto quanto antes. É um processo lento mas que dá muito resultado.

7) Atrás das nuvens brilha o sol. Se os egos são como nuvens de pensamento que envolvem nossa natureza búdica como cascas ao redor de uma cebola, ao enfraquecermos o ego essas nuvens se dissipam e aos poucos irá brilhar nossa natureza como o sol brilhando após um dia nublado. Se praticarmos a meditação diligentemente, se procurarmos manter nossa mente alerta durante o dia e se observarmos os preceitos, veremos um progresso contínuo em nossa prática. Nosso samadhi vai ficando cada vez mais profundo, por mais tempo e por mais vezes durante o dia. Isso vai preparando o terreno para o próximo passo: o Kenshô.

8) Kenshô: geralmente ocorre durante longos retiros, pois digamos que de certa forma exige determinadas condições para acontecer. Um kenshô é uma experiência direta da iluminação. Dura de 20 a 30 segundos, e nesse período desaparece a dicotomia sujeito-objeto. Tudo é uma coisa só, tudo está interligado, tudo é perfeito como é, cada átomo é necessário e está no local correto, não há passado nem futuro, somente o momento presente. Não há distinção entre eu-outro. Conteúdo é forma, forma é conteúdo. A mais absoluta e plena paz, uma indescritível sensação de liberdade, pois nesses momentos estamos livres do ego. A mente está dominada e quieta. Esquecemos de nós mesmos e vivemos por alguns momentos em nossa natureza búdica. A experiência do kenshô é libertadora e muda completamente uma pessoa. O mundo muda e a iluminação torna-se possível. O kenshô geralmente só acontece após longos períodos de meditação, quando o praticante está exausto e literalmente desiste de alcançar a iluminação. É por isso que os sesshins são tão severos, a intenção do sesshin é gerar esta crise artificial, esta exaustão, para que o kenshô possa acontecer. Mas o praticante que realiza um kenshô passa a viver um outro dilema: Ele sabe que a iluminação é possível, já experimentou a iluminação, e mesmo assim continua preso nas tramas do Samsara, à mercê do ego, jogado de emoção em emoção como uma folha na correnteza. É complicado. Ele precisa se libertar o mais rápido possível. Após o primeiro kenshô tem início um período conhecido como Noite Escura. Na verdade todos nós vivemos como se estivéssemos sonâmbulos. Aquele que realiza o kenshô toma consciência disso e consegue perceber a escuridão em que está inserido.

9) Satori: Quando o praticante persiste na prática e se dedica com todas as forças para alcançar a iluminação, participando do maior número possível de sesshins e por vezes fazendo retiros solitários por conta própria, vai tendo paulatinamente mais experiências de kenshôs, até que o kenshô passa a ser diário, como os samadhis. O praticante tem continuamente insights fantásticos, visões e experiências místicas. Começam a se desenvolver os siddhis (certos 'poderes' considerados 'sobrenaturais'). Nesse estágio, a qualquer momento um determinado estímulo pode finalmente levar o praticante ao SATORI, que é a iluminação propriamente dita. Existem vários níveis de iluminação. Há quem afirme que aquele que realizou um kenshô já alcançou uma iluminação, mas particularmente considero esta afirmativa muito perigosa, pois quando realizamos o primeiro kenshô ainda estamos totalmente à mercê do ego. Somente após o despertar da natureza búdica - satori - é que vencemos o ego. O ego se desvanece, desaparece. Passamos a usar a personalidade quando e como desejarmos, sem sermos afetados por ela. Não há mais apego. Sabemos que a personalidade utilizada naquele momento não somos nós. É o Nirvana, nenhum vento nos leva. É como o mecânico que, após usar uma ferramenta, simplesmente a abandona pois não precisa mais dela.

Concluindo, quando tomamos consciência de que o EU É ILUSÃO, tem início um longo processo em busca de nossa verdadeira natureza. Após dispersar as nuvens do ego que encobrem nossa natureza, ela pode brilhar com toda a sua intensidade. Eliminados os apegos que nos levam ao sofrimento, o que resta é a mais profunda paz e felicidade. A personalidade deve ser apenas uma ferramenta que utilizamos para conviver em sociedade, mas precisamos ter consciência de que ela não representa o que somos, é apenas uma roupa que precisamos vestir de acordo com cada situação. E por fim, se o ego consome quase a totalidade de nossa energia e mesmo assim somos capazes de fazer muita coisa, imagine o que podemos fazer se tivermos a liberação de TODA a energia, direcionada exclusivamente para um único fim. É por isso que os mestres conseguem realizar enormes obras com um mínimo de esforço. Todos os seres já são perfeitos e dotados de virtude e sabedoria, mas o ego não permite que eles percebam isso, pois o ego nos mantém adormecidos, como se estivéssemos sonhando. O primeiro passo para alcançarmos o despertar é praticar meditação regularmente e observarmos diligentemente os preceitos. Finalmente, um coan: se o ego é ilusão, então quem realmente somos?

O caminho de Buda é insuperável. Faço votos de percorrê-lo até o fim e de realizá-lo.

Que todos possam se beneficiar.